É David que está nas fotografias de férias desde há mais de 10 anos. Repreende-os quando fazem os pequenos disparates desde a mesma altura, assim como os elogia nas suas conquistas e quando se portam bem. Vai levá-los e buscá-los à escola e à catequese e aos escuteiros. Não é o pai biológico da Margarida nem do Guilherme, mas ama Joana, a mãe dos dois, e aprendeu a gostar deles desde pequenos.

Guilherme tinha cinco anos quando David Soalhães começou a namorar com a mãe e Margarida apenas dois. Hoje, Margarida tem 12 anos e Guilherme está em plena adolescência, com 15, e a verdade é esta: David não é o pai, mas é como se fosse.

Claro que nem sempre é assim

Até porque a figura do padrasto hoje representa a construção de um modelo novo de comportamento. Se antigamente se era padrasto quase sempre por via da viuvez de uma mulher e, o mais natural, era assumir o lugar deixado vazio pela morte de alguém, hoje, na grande maioria dos casos, há um pai biológico vivo. Não há um lugar a ocupar, mas antes um lugar a construir. E esse lugar é construído de formas diferentes.

“A dinâmica familiar nas famílias recompostas é influenciada por uma diversidade de fatores dos quais alguns dos mais determinantes são a cooperação e a negociação parental entre a mãe e o padrasto e a forma como o próprio padrasto se posiciona face à parentalidade (biológica e social). Deste ponto de vista, o lugar ocupado pelo pai biológico não parece constituir um fator determinante de modo como se constrói a relação padrasto-enteado no quotidiano familiar”, explica Susana Atalaia, socióloga e investigadora pós-doutorada do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Padrastos: O amor que se aprende

Um amor que se aprende

David entrou na vida dos enteados devagar. Primeiro, um almoço com amigos presentes para os conhecer, depois umas saídas, depois visitas a casa, até acabar por estar presente quase todos os dias. Quando se mudaram todos para debaixo do mesmo teto, anos depois, não houve propriamente uma sensação de choque para ninguém. Menos ainda quando casaram, em 2011 dois anos depois de terem começado a viver juntos. Tudo decorreu sem dramas ou grandes sobressaltos, com autoridade e responsabilidades partilhadas. “Nunca me quis substituir aos pais biológicos. Eles existem: o da Margarida um pouco ausente, mas há contacto, o do Guilherme nem isso. Mas mesmo antes de vivermos todos juntos, já me sentia um pai”, confessa David. E tinha autoridade semelhante porque teve desde cedo “carta branca” de Joana para agir como lhe parecesse melhor – chamadas de atenção e ralhos incluídos. “Eu sempre os respeitei e eles sempre me respeitaram. E, felizmente, nunca ouvi o clássico ‘tu não és meu pai’ ou ‘tu não mandas em mim’.”

Embora a adaptação não seja sempre tao pacifica, é essencial que este reconhecimento da autoridade do padrasto aconteça. “Enquanto elemento do casal, o padrasto é uma figura de autoridade em casa que deve ser reconhecida por todos, desde o início”, defende a psicóloga Ana Guilhas. Apesar disso, a psicóloga defende que o padrasto deve ter sempre muito claro o que o leva a estar ali, e existir na vida daquela criança: a relação que tem com a mãe. “Antes de mais, ele é um elemento do casal. E é essa relação que dá sentido a tudo o resto. Mesmo que, com o passar do tempo, a relação com as crianças possa ganhar relevância em si mesma.” E é verdade é que se tudo correr bem, quase sempre ganha. David que entretanto foi pai de Duarte, que tem quase quatro anos, não sente que a relação com os enteados tenha mudado depois da paternidade biológica. “Gosto deles e continuei a gostar. Acho que a única diferença é que, com o Duarte, como estive desde o primeiro momento, apaixonei-me por ele logo, foi mais imediato. Com o Guilherme e com a Margarida foi uma relação mais construída, mais gradual.” E uma das frases mais reveladoras sobre a ligação construída por David com as crianças, vem na sequência de uma pergunta insuspeita: quem quer conquistar uma mulher, tem de lhe conquistar os filhos?, perguntamos. David responde: “Acho que é fundamental. Eu também seria por certo incapaz de estar com uma pessoa que não gostasse do Duarte. E do Guilherme e da Margarida, assumindo que eles não sairiam da minha vida, mesmo se eu saísse da vida da mãe deles.”

Este tipo de relação criada, leva mesmo muitos a perguntarem-se: para quando um reconhecimento dos laços sociais em detrimento dos biológicos? Como proceder se a criança estabelece uma ligação afetiva forte com um padrasto e ele e a mãe se divorciam? É lícito afastar um padrasto de um enteado, com base na primazia dos laços biológicos?

Padrastos: O amor que se aprende

Uma lei controversa

Com o aumento do número dos divórcios e, com ele, o aumento das famílias recompostas, os padrastos têm um lugar central na vida de muitas crianças. Os dados dos últimos Censos (2011) confiram que o número de famílias recompostas é cada vez maior: 105 763, em 2011, a grande maioria, 78 por cento, das quais são famílias recompostas com padrasto.

De tal forma que, desde meados do ano passado, chegou a alteração legislativa que define que os juízes vão poder atribuir responsabilidades de pais e madrastas ou padrastos, se a mãe ou o pai da criança estiver impedido de tomar conta dela, seja em casos de incapacidade, desaparecimento ou morte. Parece um reconhecimento e uma vitória perante a lei de quem está todos os dias na vida das crianças, mas há quem faça uma leitura menos positiva do que significa.

A socióloga Susana Atalaia acredita que o principal desafio aos padrastos continua a ser a ausência de enquadramento legal dos laços estabelecidos entre os membros das famílias recompostas enquanto forma específica de vida familiar. “As recentes alterações ao regime de exercício das responsabilidades parentais vão mais no sentido de dar continuidade ao passado do que de um reconhecimento explícito das novas realidades familiares”, defende a investigadora, referindo-se às alterações introduzidas pela Lei nº137/2015, de 7 de setembro. “Privilegia-se a lógica da substituição, em que o padrasto ou madrasta vem substituir o progenitor ausente ou impedido de exercer as responsabilidades parentais, em detrimento da lógica da adição em que o padrasto ou madrasta se constitui como uma terceira pessoa com responsabilidades parentas face à criança.”

Resultado, a nova lei não reconhece o direito das famílias recompostas a um enquadramento legal explícito e a questão, muito pertinente, do que acontece à relação padrasto-enteado na eventualidade de divórcio, separação e morte do cônjuge continua por definir.

Padrastos: O amor que se aprende

Pais de coração

Que se pense duas vezes antes de usar expressões como “vida madrasta” ou “uns são filhos, outros enteados”. Sendo certo que o padrasto não é pai, nem o deve substituir, o certo é que há vínculos afetivos que se criam, de tal forma que há quem opte por lhes chamar pai. Estará errado? Ana Guilhas acha que não. “Acho importante que a criança conheça sempre a sua história, a sua origem porque segredos ou as histórias “mal contadas” são de alguma forma intuídas pela criança e originam sempre bloqueios no seu desenvolvimento.

Mas se o papel de pai (assim como o de mãe) não têm que ser vividos pelo pai biológico”, defende Ana Guilhas, lembrando outras situações: é isso que acontece, como no caso da adoção ou de alguns tios ou avós que assumem essa função. “Ter um pai biológico presente e que deseje exercer o seu papel de forma plena e amorosa, é maravilhoso. O padrasto entra como mais uma relação saudável e estruturante na vida da criança. Na situação contrária, é igualmente bom poder escolher e ser escolhido por um pai afetivo – que neste caso será o padrasto.”

Padrastos: O amor que se aprende

Os sete perfis de padrastos

Susana Atalaia, socióloga e investigadora pós-doutorada no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, identifica na sua tese de doutoramento “A Parentalidade em Contexto de Recomposição Familiar: O Caso do Padrasto” sete modos diferentes de construção da parentalidade do padrasto.

O Padrasto Envolvido

“Digo-lhes que têm um pai, mas eu também me sinto pai deles.”

Muito disponível e presente, partilha com a mãe as responsabilidades, decisões e autoridade parental, mantendo com os enteados um laço íntimo e afetivo. Para ele, ser pai é igual a ser padrasto. Encara o casal conjugal como um casal parental e a presença do pai biológico não o impede de exercer a parentalidade no quotidiano.

O Padrasto Pai Substituto

“O pai nunca quis saber dele e quem o está a educar sou eu. Chama-me mesmo pai.”

Muito disponível, ajuda a mãe nos cuidados parentais, mantendo um laço próximo com os enteados. É presente, cuidador e educador, assumindo-se como o pai substituto do enteado devido à ausência do pai biológico. Rejeita o título de padrasto na medida em que se sente e age como o “verdadeiro” pai.

Padrastos: O amor que se aprende

O Padrasto Estatutário

“Nunca cheguei a tomar conta da minha enteada.” e “O meu filho é o meu filho.”

Pouco disponível, não participa nos cuidados aos enteados. A relação padrasto-enteado é fortemente mediada pela mãe e construída com base no estatuto de cada um na família recomposta. Ser pai é totalmente diferente de ser padrasto. Assume-se como um padrasto provedor e, desejavelmente, a principal figura de autoridade.

O Padrasto Amigo

“Entre nós existe um relacionamento de amizade (…). É diferente do amor que há entre pai e filho.”

Disponível, participa nos cuidados parentais, tem um laço próximo com os enteados, mas a relação com o enteado é fortemente mediada pela mãe. É um amigo do enteando e uma figura de suporte da parentalidade materna, com quem partilha responsabilidades, mas não decisões parentais. Ser pai é diferente de ser padrasto, sobretudo em termos de sentimento.

O Padrasto Reivindicativo

“A minha mulher tenta tirar essa carga de cima de mim (…) mas eu digo: ‘Vivemos juntos e eu estou aqui como pai, entre aspas.”

Muito disponível, ajuda nos cuidados parentais e tem um laço próximo com os enteados, embora quase sempre mediado pela mãe. Considera que ser pai é diferente de ser padrasto. Vê-se como um educador do enteado e uma figura parental importante que precisa de lutar para conquistar o seu lugar na família.

Padrastos: O amor que se aprende

O Padrasto Distante

“Fui um bocado para o camarada, (…) jogar à bola, dar passeios (…) depois comecei a ganhar importância dentro da empresa.” Indisponível, não participa nos cuidados parentais, o laço com os enteados é marcado pela distância e por uma forte mediação materna. O seu lugar é assumidamente o de companheiro da mãe e sente o enteado como um “filho por empréstimo”. Para ele, a paternidade é menos gratificante que a vida profissional.

O Padrasto Excluído

“Eu digo não e a mãe vem por trás e diz sim, eu digo sim e a mãe vem por trás e diz não.”

Muito disponível, ajuda nos cuidados parentais, é disciplinador e protetor dos enteados e valoriza pouco o laço biológico. Ser padrasto é quase igual a ser pai. A mãe requer a sua ajuda mas não legitima as suas atitudes em termos de autoridade parental. Sente-se desinvestido e excluído.

Fonte:

Sofia Teixeira

Pais & Filhos, número 302, março 2016

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