"Foi uma viagem de sonho e nunca esperei este susto depois de termos chegado”. Aos quase seis meses de gravidez, a expressão de Ana Rita Sabóia é de apreensão quando se fala no surto de vírus Zika. “Os meus pais fizeram 70 anos no início do ano e para comemorarem decidiram oferecer-nos um presente a nós. Marcaram uma semana de férias na praia, na zona de Salvador, na Baía, para eles, os meus irmãos, a minha cunhada, o meu sobrinho, eu e o meu marido”, recorda a profissional de seguros.

Como ainda se encontrava no segundo trimestre e sentia-se “lindamente”, Ana Rita não teve dificuldades em ter autorização médica para viajar. Correu tudo como planeado, ou melhor ainda, voltámos e nem três semanas depois começámos a ouvir as notícias sobre o Zika, sobre as grávidas e sobre o risco de microcefalia nos bebés. Nem queria acreditar!”, recorda. Ao lado, Miguel, o marido, pergunta como foi possível “não sabermos o que estava a acontecer. Já não digo cá, em Portugal, mas lá. A barriga da Rita era bem visível, mas ninguém nos avisou. Nem do mosquito, nem do Zika, nem para usar roupa mais comprida, nem para usar mais repelente ou evitar estar na rua ao amanhecer ou anoitecer. Nada! Só tomámos medidas já em Lisboa”.

Medidas que de precaução e prevenção – como é aconselhado pelos especialistas em surtos virais – nada tiveram. “Corremos ao médico, que procurou informação junto de colegas, mas nesta fase há pouco a fazer, a não ser esperar pelo parto e rezar para que tudo esteja bem com o nosso bebé”, desabafa a mãe. Até agora, há motivos para otimismo. “As ecografias não detetaram nada de preocupante e como estive no Brasil muito depois de passado o primeiro trimestre, é bem possível que não haja consequências. Mas só descanso quando o Miguel nascer!”, acrescenta Ana Rita.

Mesmo as análises sanguíneas pedidas pelo casal são, neste momento, dispensáveis. “O obstetra garante que a deteção de uma infeção pela presença do vírus apenas é possível, com uma análise ‘normal’, nos poucos dias em que surgem sintomas e em que está ativo. No nosso caso, ninguém teve queixas na família, ou seja, o mais provável é que os resultados sejam inconclusivos, pois passaram muitos dias”, revela Miguel Sabóia.

Na Sombra do Zika

Vírus idoso

Zika. O nome que está nas bocas do mundo é um velho conhecido da comunidade científica, tendo sido detetado na selva africana há perto de 70 anos. Mas, ao contrário de outros microrganismos altamente perigosos, como o Ébola, foi até agora considerado “relativamente benigno”, já que a mortalidade é residual e as poucas pessoas que mostram sintomas recuperam num curto espaço de tempo.

Tudo começou a mudar a partir da segunda metade de 2015 quando se deu uma autêntica explosão de casos de microcefalia em recém-nascidos no Brasil, com maior incidência no estado de Pernambuco, a nordeste do país. O número disparou para dez vezes mais do que o habitual e motivou um decreto de emergência em saúde pública, o que levou ao início de investigações científicas para deteção de uma eventual relação de causa-efeito.

Os “suspeitos” rapidamente apontados foram os mosquitos do tipo Aedes aegypti, suscetíveis de transmitir infeções por vários vírus: Dengue, Chikungunya e também Zika. E foi precisamente este último que se encontrou no líquido cefalorraquidiano (que faz parte do sistema nervoso central) de um número expressivo de bebés com microcefalia.

“Em termos científicos, esta descoberta foi significativa, pois determinou o microrganismo em causa, apesar de não trazer esclarecimentos sobre a forma de transmissão mãe-filho e em que altura da gravidez há maior risco”, revela a virologista brasileira Maria Beatriz Beltrão. Mas por que razão, sendo o Aedes aegypti um mosquito comum no país e o Zika um vírus previamente conhecido, apenas agora surgiu um surto que, ao fecho desta edição, tinha já afetado todos os países da América Latina e espalhado em redor do globo? “Essa é a grande questão e tem de ser respondida através de uma metodologia de investigação retrospetiva. Uma teoria aponta para a entrada do Zika no país durante o Campeonato do Mundo de 2014. Um visitante estrangeiro infetado poderá ter sido picado por um mosquito e tudo resultou a partir daí, incluindo eventuais mutações. Mas é muito difícil comprovar tal cadeia de transmissão”, reconhece.

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Para tudo!

Mariane e Jaime Machado vivem e trabalham no centro de São Paulo. Casados há oito anos, decidiram, em setembro do ano passado ter o primeiro filho. “Fizemos os testes para saber se estava tudo bem com a nossa saúde e a minha mulher parou com a contraceção”, refere Jaime. Foi, porém, sol de pouca dura. “Em dezembro, e por indicação especifica da ginecologista, ela voltou a tomar a pílula”. No Brasil multiplicavam-se as notícias de um surto de Zika e dos muitos bebés que estavam a nascer com microcefalia e “a decisão mais lógica e prudente” para o o advogado e a arquiteta foi mesmo esperar por tempos melhores (segundo os especialistas, a época mais seca faz diminuir o número de mosquitos). “Esperemos que isso aconteça que as medidas sanitárias também funcionem e que haja ‘luz verde’ médica para voltarmos a tentar!”, diz Jaime.

“Infelizmente, tem sido difícil passar a mensagem de que há medidas a tomar para controlar a propagação do inseto e isso é, quanto a mim, o grande problema neste momento”, refere o advogado. “Seria importante que os vários níveis de governo, do local ao federal, passando pelo estadual, concertassem estratégias. Só assim poderão ser obtidos resultados rapidamente”.

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Terreno por desbravar

Apesar de há muito se saber da existência do Zika, o surto que o mundo agora enfrenta vem demostrar que “na realidade, conhecemos muito pouco sobre ele”, admite Maria Beatriz Beltrão. É que para além da temida microcefalia, alguns relatórios parecem indicar que este vírus poderá também estar a causar outras patologias, nomeadamente a nível de problemas na retina, atrofias várias e a Síndrome de Guillan-Barré. Trata-se de uma doença autoimune que ocorre quando o sistema imunológico do corpo ataca o sistema nervoso, causando uma inflamação generalizada.

E se parece haver cada vez menos dúvidas sobre a relação entre o Zika e a microcefalia diagnosticada em recém-nascidos, ainda há muito por saber sobre a forma exata como o vírus abre caminho a esta doença. “Por exemplo, será que apenas há perigo através de uma infeção da grávida no primeiro trimestre, ou toda a gestação será um período de risco?”, questiona Maria Beatriz Beltrão, que refere alguns relatórios que dão conta que é só a partir da 28ª semana que o perímetro cefálico do feto apresenta sinais ecográficos de não estar a desenvolver-se da forma esperada. “Num país como o Brasil, em que a cultura de cuidados pré-natais garantidos pelos serviços de saúde pública não contempla o recurso aos ‘ultrasons’ (ecografias) múltiplos, e em que grande parte da população afetada pertence a grupos socioeconómicos desfavorecidos, faltam dados para realizar uma análise epidemiológica com resultados rigorosos”.

A comunidade científica está, pois num contrarrelógio em várias frentes. “Por um lado, obter mais certezas sobre a relação causa-efeito entre o Zika e várias condições de saúde. Por outro, determinar de que forma ocorrem os vários processos de transmissão e, por fim, procurar criar uma vacina, à semelhança do que aconteceu com o vírus da dengue”, explica a virologista. Porém, e também como aconteceu com o dengue, até que uma inoculação eficaz seja utilizada em larga escala podem passar anos. É por isso que “agora, o modo mais eficaz de gerir esta crise terá de ser uma aposta na prevenção de multiplicação do mosquito e educação para comportamentos seguros”. No dia 1 de fevereiro deste ano, a Organização Mundial de Saúde (OMS) veio reconhecer a gravidade da situação, ao considerar a multiplicação de casos de microcefalia ligada ao Zika como um “estado de emergência de saúde”. Esta classificação abre caminho ao aumento dos recursos financeiros internacionais destinados ao estudo da relação entre o vírus e aquela doença e à travagem da propagação global do microrganismo.

Entretanto, e enquanto não existem outras ferramentas para conhecer e combater melhor o Zika, multiplicam-se as recomendações, em especial as destinadas às mulheres grávidas ou que pretendem engravidar e às populações em zona de maior risco. Desde evitar viajar para as regiões mais afetadas – em Portugal, a TAP reembolsa o valor dos bilhetes adquiridos por gestantes para vários destinos – a ponderar adiar uma gravidez por períodos até dois anos e usar contracetivos de barreira em relações sexuais com parceiros que tenham estado alguns países em causa, de tudo um pouco tem sido referido.

No terreno, as medidas de proteção passam por usar e abusar do repelente, optar por vestuário claro e que cubra a maior área possível de pele, evitar águas onde aparecem as larvas do Aedes aegypti, usar mosquiteiros nas portas e janelas e não deixar acumular lixo. “O Zika está nos mosquitos e os mosquitos multiplicam-se nos ‘criadouros’, volumes de água que, curiosamente, quanto mas limpa está mais perigosa é. Este conhecimento e a adoção de medidas de prevenção das picadas, é por agora, a melhor estratégia de proteção”, conclui a virologista.

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Há Zika em Portugal?

Os únicos casos de infeção por vírus Zika diagnosticados no nosso país ocorreram em pessoa atingidas durante a permanência em países da América do Sul. O mosquito Aedes  aegypti existe no arquipélago da Madeira (depois de ter sido erradicado no Continente em meados do século XX), o que tem vindo a motivar uma atenção especial por parte das autoridades de saúde nacionais, mas para já não há relatos de que o vírus esteja presente nesta população de insetos.

O cenário de transmissão da doença de uma pessoa infetada para um mosquito (que terá de ser fêmea) e, consequente retransmissão a hospedeiros humanos é, no entanto, possível. Mais uma vez, a melhor tática de combate combina medidas de prevenção e precaução.

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O que é a microcefalia?

Trata-se de uma condição neurológica em que as dimensões do cérebro e do crânio da criança ficam abaixo do segundo percentil do tamanho padrão para a idade.

Em termos práticos, é diagnosticada quando o perímetro cefálico de um recém-nascido de termo é igual ou menor que 32 centímetros. A maior parte dos casos é causada por infeções adquiridas pela mãe, especialmente no primeiro trimestre da gravidez. Toxoplasmose, rubéola e citomegalovírus são algumas doenças que originam a microcefalia, bem como o abuso de álcool e drogas ou síndromes genéticas. E a lista junta-se agora o vírus Zika.

Em 90 por cento dos casos, resulta num atraso do desenvolvimento neurológico, psíquico e/ou motor da criança. O tipo e o nível de gravidade da sequela variam, e em algumas situações, deixa incólume a capacidade intelectual. Défices cognitivos, visuais, auditivos e epilepsia são alguns problemas que podem aparecer. Não há como reverter a microcefalia com medicamentos ou outros tratamentos específicos, mas é possível melhorar a qualidade de vida da criança com terapias em diversas áreas.

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O que é o vírus Zika?

O Zika foi detetado, pela primeira vez, em África, no ano de 1947. Ao longo das últimas décadas, viajou ao redor do mundo e foi responsável por alguns surtos contidos. Conhecido da comunidade científica como relativamente benigno, chegou às noticias no Brasil em 2015, quando se começou a associar com as multiplicação significativa de casos de microcefalia em bebés nascidos após as mães terem sido infetadas, enquanto grávidas.

Como se transmite?

O principal meio de transmissão reconhecido é através da picada do mosquito Aedes aegypti. Pode também ser transmitido pela mulher grávida ao feto durante a gravidez, pela via placentária, pensando-se que está associado ao desenvolvimento de microcefalia. A transmissão da mãe para o recém-nascido pode acontecer por altura do nascimento, mas é raro. Existe um relato de possível transmissão através de transfusão sanguínea e dois de possível transmissão sexual.

Como se trata?

Não há tratamento específico, apenas a gestão de sintomas através de medicamentos. Recentemente, a Organização Mundial de Saúde revelo que existem pelo menos 12 equipas cientificas internacionais a trabalharem na criação de uma vacina. No entanto, e como essa pesquisa se encontra numa fase inicial, os resultados apenas devem ser obtidos a médio prazo.

Fonte:

Sofia Castelão

Pais & Filhos, número 302, março 2016

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