A reconfiguração das famílias tornou inadiável uma atualização às regras das responsabilidades parentais: há cada vez mais crianças que vivem, crescem e cimentam laços de afeto e relações de vinculação com os companheiros dos pais biológicos, cujo papel e relevância na vida das crianças não devem ser ignorados. A nova lei, em vigor desde setembro, altera o exercício das responsabilidades parentais, atribuindo mais poderes a madrastas e padrastos, desde que reunidas determinadas condições e tendo como fundamento a relevância dos laços afetivos da criança em detrimento dos de sangue. Por outras palavras, poderes que permitem que madrastas e padrastos possam assumir um papel de primeira linha – em vez de avós ou tios da criança – no caso dos progenitores não poderem exercer as responsabilidades parentais.

Na prática, explica o advogado Rui Alves Pereira, “os atos da vida corrente” como por exemplo, levar ou ir buscar as crianças ao colégio, já eram delegáveis pelo progenitor ao seu novo cônjuge”, mas com este novo diploma, madrastas e padrastos passam a poder ter responsabilidades parentais “quanto aos atos de particular importância na vida das crianças, como seja a escolha do colégio, orientação religiosa, questões de saúde, etc”.

Com Poder de Pais

Para que possam assumir estes novos poderes, é imprescindível que estejam reunidos vários critérios, que são analisados e validados pelo Tribunal. Nos casos em que um dos pais não pode exercer as responsabilidades parentais “por ausência (não se sabe do seu paradeiro), incapacidade (doença, acidente…) ou outro impedimento decretado pelo Tribunal (inibição do exercício das responsabilidades parentais), caberá esse exercício ao outro progenitor. Não podendo este último, também, por qualquer impedimento, exercer as responsabilidades parentais, então as mesmas serão exercidas, mediante decisão judicial, por uma ordem preferencial de pessoas, começando pelo cônjuge ou unido de facto de qualquer um dos progenitores e só depois se passará para alguém da família de qualquer um dos progenitores”, esclarece Rui Alves Pereira.

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Ou seja, com as novas regras, na linha de prioridade para o exercício das responsabilidades parentais, as madrastas e padrastos passam à frente dos avós e tios da criança. O mesmo acontece quando uma criança perde os dois pais: com a morte de um progenitor, as responsabilidades parentais passam para o progenitor sobrevivo, mas no caso da morte deste, esses poderes passam a ser exercidos de acordo com “uma ordem preferencial, ou seja, primeiramente pelo cônjuge ou unido de facto do progenitor sobrevivo (padrasto ou madrasta) e só depois pelos familiares dos progenitores”. Rui Alves Pereira sublinha contudo que “independentemente deste diploma legal, já era possível ao progenitor sobrevivo nomear, por testamento, o seu cônjuge ou unido de facto como tutor dos seus filhos”.

Progenitores e tutores são, contudo, “realidades juridicamente diferentes, sendo que a nomeação do tutor tem de ser confirmada pelo tribunal, constituindo-se ainda, um conselho de família”, explica.

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O poder da vinculação

Para a psicóloga clínica Fernanda Salvaterra, especialista na área da família e parentalidade, este ajuste da legislação à realidade das famílias atuais “faz todo o sentido”.

“Sabe-se hoje que o estabelecimento e a manutenção de laços com a(s) figura(s) de vinculação é essencial para o desenvolvimento, desde o nascimento e ao longo do ciclo de vida. O laço afetivo traduz uma relação emocionalmente significativa em que o indivíduo deseja manter proximidade com uma pessoa, sentindo-se angustiada com a separação. As figuras de vinculação da criança são caracterizadas por proporcionarem cuidados físicos e emocionais, terem continuidade e consistência na vida da criança e fazerem nela um investimento emocional.”

Por isso, esclarece, “são estas as características que devem ser observadas quando se decide quem vai ficar com a guarda legal da criança, independentemente de ter ou não ter laços de sangue”. Porque “é a qualidade do laço de vinculação que deve ser avaliada”. Fernanda Salvaterra defende, portanto, que as funções parentais devem ser atribuídas à “pessoa que proporciona os cuidados básicos à criança, não só físicos, mas também emocionais, que lhe proporciona segurança e conforto e à qual a criança está vinculada”. Até porque, sublinha, “as crianças que perdem a sua figura de vinculação experimentam uma perda potencialmente traumática.”

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Pai suplente

Cláudia Oliveira perdeu o marido quando estava grávida. Passado dois anos e meio, casou com João e é ele quem “cuida todos os dias do Tomás, e quem o leva à escola, quem joga à bola com ele, quem ralha quando é preciso, quem vai à reunião dos pais… e quem passou noites em branco ao lado dele quando estava doente, quem o leva ao pediatra quando é preciso”. O Tomás “é como um filho para ele”.

Embora o menino não o trate por pai, “porque sabe que o pai morreu, tem fotos dele e eu faço questão em falar-lhe dele, convive com os avós paternos e com toda a família do lado do pai, o João é uma espécie de pai suplente”, brinca Cláudia, revelando que “esta nova lei enche-nos o coração porque achamos que ele tem tantos deveres e responsabilidades também deve ter direito no que diz respeito ao Tomás”.

Cláudia refere-se à eventualidade de lhe acontecer algo. “Não vivo obcecada com esta ideia, mas fico mais descansada por saber que, mesmo que me aconteça algo, eles podem ficar juntos e felizes, como são!”. Apesar de ser uma família alargada em que todos se dão bem – “o Tomás tem a sorte de ter três avós e três avôs!”. – e de achar que os avós paternos não o iriam retirar do seu núcleo familiar, “fico mais tranquila que o João pode assumir legalmente as suas funções enquanto principal cuidador do Tomás.” Até porque “temos um filho em comum e não faria qualquer sentido afastar os irmãos…”, sublinha Cláudia.

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Opinião idêntica tem Afonso Silva, padrasto de Beatriz: “Penso que existe uma proximidade maior entre padrastos/madrastas e a criança do que avós e tios… Nunca quis ser um substituto do pai, quero ser uma espécie de bónus da vida dela, para cuidar, ajudar na formação, e em tudo o que ela precise. Para mim, faria todo o sentido que a Beatriz ficasse comigo, uma vez que toda a sua vida (amigos, escola, etc…) e o irmão estão comigo.”

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E é exatamente este tipo de afastamento e perda emocional que estas regras podem evitar daqui para a frente. Ainda que, pela falta de clareza do diploma, possa também daí surgir alguma confusão e novos conflitos nos tribunais…

“Na minha opinião, numa perspetiva formal e técnico-jurídica, este diploma viola princípios fundamentais das responsabilidades parentais e da família”, defende Rui Alves Pereira, referindo que possa haver “uma enorme confusão de conceitos e institutos jurídicos por parte do legislador”. Contudo, acrescenta que “numa perspetiva material e de substância, quero acreditar na bondade do diploma e que este visa proteger as crianças”. Aliás, sublinha, esta nova lei vem proteger as pessoas que “seriam abrangidas pela coadoção”, que não foi aprovada e da qual é muito mais apologista. Por tudo isto, Rui Alves Pereira sublinha que “a discussão destas matérias ainda não foi levada a cabo de uma forma transparente, sem preconceitos e de forma direcionada”. Com as novas regras foi dado um pequeno passo, mas o caminho ainda é longo!

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Coadoção “light”

Uma das novidades desta alteração da lei diz respeito ao exercício das responsabilidades parentais nos casos em que a criança tem apenas um vínculo de filiação. Como acontece, por exemplo, quando a criança é adotada por apenas uma pessoa. “Com este novo diploma, é possível estender as responsabilidades parentais ou cônjuge do progenitor ou unido de facto”, explica Rui Alves Pereira, acrescentando que, após avaliação do tribunal, poderão porventura exercê-las em conjunto. Pode, por isso ser estendido como uma espécie de coadoção “light”.

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Fonte:

Teresa Martins

Pais & Filhos, número 298, novembro 2015

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